A tecnologia blockchain há muito não se restringe apenas às criptomoedas. Com o amadurecimento desse ecossistema, um dos casos de uso mais relevantes passa a ser a tokenização de ativos reais que já possuem valor tangível na economia tradicional, tais como imóveis, obras de arte, bens de luxo ou até mesmo projetos de infraestrutura. Esses ativos agora podem ser representados digitalmente na forma de tokens, armazenados e transacionados via blockchain, proporcionando transferências mais rápidas, transparência ampliada e maior acessibilidade global.
O Brasil está emergindo como um polo de inovação na tokenização de ativos reais[1], combinando agilidade tecnológica com um ecossistema financeiro em rápida evolução. Enquanto empresas globais ainda exploram as vantagens do blockchain, o mercado nacional já dá passos concretos: o crescimento de 60% na oferta de ativos tokenizados por companhias brasileiras no último ano — mais que o triplo da média mundial (23%) — evidencia uma maturidade singular. Esse movimento não apenas atrai investidores institucionais, mas também amplia o acesso a oportunidades anteriormente restritas a grandes players, alinhando-se às exigências por eficiência e transparência que definem a economia na Era da Informação.
Os padrões ERC (Ethereum Request for Comments) são propostas técnicas que definem regras para a criação de tokens na blockchain Ethereum. Funcionam como “normas de construção” que garantem interoperabilidade entre aplicações. Por exemplo, o ERC-20 — o padrão mais conhecido — estabelece diretrizes para tokens fungíveis (como o Ether), e, por esse motivo, define funções padronizadas que permitem a fácil transferência de ativos virtuais entre seus usuários, o que favoreceu a escalabilidade do ecossistema, permitindo a emissão de stablecoins, criptomoedas, tokens utilitários com mínima fricção técnica.
No entanto, essa mesma simplicidade representa uma limitação em ambientes regulados: o padrão não prevê mecanismos nativos de verificação de identidade, restrição de transferência com base em critérios legais, ou controle de acesso vinculado a credenciais do titular. Em outras palavras, qualquer usuário com uma carteira compatível pode receber ou transferir tokens ERC-20, independentemente de sua localização, perfil ou situação jurídica — um modelo que, embora eficaz em redes abertas, mostra-se insuficiente para representar a tokenização de ativos reais.
É justamente nesse ponto que o ERC-3643 se diferencia, ao propor uma arquitetura projetada desde a base para lidar com os requisitos normativos e operacionais de ativos do mundo real. Enquanto o ERC-20 pressupõe um ambiente descentralizado e aberto, onde qualquer endereço é livre para interagir com o token, o ERC-3643 é estruturado para operar em contextos permissionados.
Trata-se de um padrão que incorpora, de forma nativa, mecanismos de verificação de identidade, restrições de transferência e lógica de conformidade regulatória diretamente no contrato inteligente. Em outras palavras, ele torna possível que o próprio token atue como instrumento de enforcement das exigências legais, sem depender de estruturas externas para validação de participantes ou controle de fluxos.
Originalmente concebido como T-REX (Token for Regulated Exchanges), o ERC-3643 possui modelo modular, baseado na separação entre identidade, compliance e lógica do token, o que permite adaptabilidade e interoperabilidade. O controle de acesso se dá por meio de um sistema de identidades on-chain, onde cada usuário deve ter sua carteira previamente validada por entidades autorizadas que atestam atributos como verificação KYC/AML, residência ou qualificação como investidor profissional. Isso possibilita que ativos como valores mobiliários, cotas de fundos, imóveis ou créditos de carbono sejam tokenizados e distribuídos de maneira segura e regulada.
Em um momento em que o arcabouço regulatório brasileiro para ativos virtuais passa por consolidação, o uso de padrões como o ERC-3643 torna-se especialmente relevante. A própria estrutura da Lei n.º 14.478/22, ao estabelecer parâmetros para a atuação de prestadores de serviços de ativos virtuais, já indica que soluções tecnológicas com foco em compliance ganharão protagonismo. Nesse contexto, a tokenização de ativos reais não está à margem da regulação — ao contrário, ela surge como uma das vertentes mais promissoras da nova economia digital, exigindo arquiteturas técnicas que sejam compatíveis com exigências legais, fiscais e prudenciais.
O ERC-3643 oferece justamente essa convergência: um padrão maduro, interoperável e preparado para ambientes regulados. Para empresas que desejam estruturar ofertas tokenizadas de forma segura, escalável e juridicamente viável, essa tecnologia representa um diferencial competitivo. Combinando identidade digital, lógica regulatória automatizada e flexibilidade contratual, ela abre caminho para que o Brasil não apenas acompanhe, mas lidere a próxima fase da integração entre finanças tradicionais e infraestrutura blockchain.
[1] https://br.cointelegraph.com/news/tokenization-by-brazilian-companies-exceeds-the-global-average-and-this-says-a-lot-about-the-digital-maturity-of-the-market