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Há bis in idem na imputação concomitante de estelionato e crime contra economia popular

O Superior Tribunal de Justiça, no âmbito do julgamento dos autos de Habeas Corpus nº 132.655/RS [1], analisou a possibilidade de configuração de bis in idem em face da imputação ao réu, de forma concomitante, dos crimes de estelionato (artigo 171 do Código Penal) e de ganhos fraudulentos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas, corriqueiramente conhecido por “pirâmide financeira” (artigo 2º, IX, da Lei nº 1.521/1951).

Ao caso, o relator, Rogério Schietti Cruz, concedeu a ordem de Habeas Corpus para, diante da identificação do bis in idem, determinar o trancamento da ação penal no que atine ao crime de estelionato, uma vez que os fatos descritos na denúncia apresentada pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul para configurar esse delito e o crime contra a economia popular eram idênticos. Nesse sentido, vale reproduzir trecho do acórdão:

“No caso em análise, vê-se que a descrição das circunstâncias fáticas que permeiam os ilícitos imputados ao recorrente – crime contra a economia popular e estelionatos – são semelhantes, pois mencionam a prática de “golpe” em que ele e os coacusados induziriam as vítimas em erro, mediante a promessa de ganhos financeiros muito elevados, com o intuito de levá-las a investir em suposta empresa voltada a realizar apostas em eventos esportivos. A diferença está na identificação dos ofendidos nos estelionatos.”

E não poderia ser diferente, nas hipóteses de crime contra a economia popular por pirâmide financeira, a identificação de algumas das vítimas não enseja a responsabilização penal do agente pela prática de estelionato (HC nº 464.608/PE e CC nº 133.534/SP).

Embora o ne bis in idem tenha origem mais ligada à sua vertente processual, impedindo a formação, continuação ou sobreveniência de uma nova persecução contra o mesmo indivíduo fundada por um mesmo fato, este princípio tem uma dupla face de garantia: de um lado, o princípio possui abrangência nitidamente material, a conferir ao indivíduo o direito de não ser punido duas vezes pelo mesmo fato; de outro lado, fala-se no aspecto processual, pelo qual se assegura ao indivíduo o direito de não ser processado duas vezes pelo mesmo fato, sendo que o ne bis in idem incide igualmente desde a fase investigatória, de modo a coibir a tramitação simultânea ou sucessivamente de duas investigações sobre o mesmo “caso penal” [1].

Empresta-se do processo civil a expressão litispendência para designar essa situação, tanto que, ao tratar sobre o tema, no bojo da operação “lava jato”, o Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que no processo penal tem-se a “litispendência” nas situações em que um indivíduo esteja respondendo a dois processos distintos relacionados à mesma imputação, concluindo pela ofensa ao princípio do ne bis in idem:

(…) a litispendência “guarda relação com a ideia de que ninguém pode ser processado quando está pendente de julgamento um litígio com as mesmas partes (eadem personae), sobre os mesmos fatos (eadem res), e com a mesma pretensão (eadem petendi), que é expressa por antiga máxima latina, o ne bis in idem” (HC n. 320.626/SP, Sexta Turma, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, DJe de 22/6/2015). Assim, ocorrida tal situação, conclui-se pela ofensa ao princípio da vedação ao bis in idem, não havendo justa causa para o prosseguimento da ação subsequente. (STJ – RHC 68070 / PR 2016/0043996-7, Data do Julgamento:26/04/2016Data da Publicação: 04/05/2016 Órgão Julgador:T5 – QUINTA TURMA, Relator: Ministro FELIX FISCHER)

Reitera-se e destaca-se que esse entendimento também é pertinente para fase pré-processual, o que vai de mãos dadas com o reconhecimento dos direitos do investigado. Admitir qualquer entendimento diverso desse seria admitir grave violação aos direitos e garantias individuais.

Não se olvida que na etapa da investigação ainda não há uma cognição plena do fato concreto, mas, tão somente uma classificação prima facie da conduta delitiva, que será́ confirmada (ou não) à medida em que os elementos probatórios são colhidos. Contudo, a análise da ocorrência de bis in idem antecede a acusação formal, não sendo tolerada a existência de dois procedimentos idênticos e simultâneos na fase investigatória, afinal, não se pode esperar que seja oferecida denúncia para que se reconheça a “litispendência” e, consequentemente, a violação ao ne bis in idem.

A proibição de incorrer em bis in idem funda-se no devido processo legal e, tal, como asseverado pelo já aposentado ministro do Supremo Tribunal Federal Ilmar Galvão no âmbito dos autos de Habeas Corpus 80.263/SP, guarda sua incorporação ao ordenamento jurídico brasileiro, ainda que sem o caráter de preceito constitucional, para, na realidade, complementar o rol dos direitos e garantias individuais já previstos pela Constituição, cuja interpretação sistemática leva à conclusão de que a Lei Maior impõe a prevalência do direito à liberdade em detrimento do dever de acusar. Dentre esses direitos, inclui-se o de que o indivíduo não pode ser alvo de duas ou mais investigações idênticas.

[1] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 10a Ed. São Paulo: Saraiva, 2013. P. 557.

Artigo publicado originalmente na plataforma Conjur em coautoria por Pedro Torres e Ana Beatrice Lasmar Braga, disponível no link https://www.conjur.com.br/2024-mai-16/ha-bis-in-idem-na-imputacao-concomitante-de-estelionato-e-crime-contra-economia-popula

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