No Brasil, as pirâmides financeiras, especialmente aquelas que utilizam ou simulam o uso de criptoativos e ativos digitais, estão em voga. Esse fenômeno, aliado à evolução das tecnologias, gerou a necessidade de criar um tipo penal específico e com penas mais rigorosas para esquemas de pirâmide e movimentos fraudulentos de promessa de ganho fácil. Nessa linha, a Lei n.º 14.478/22, que além de estabelecer diretrizes a serem observadas na prestação de serviços de ativos virtuais e na regulamentação das prestadoras de serviços de ativos virtuais, alterou o Código Penal para prever o crime de fraude com a utilização de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros, conduta tipificada na redação do art. 171-A e cuja pena é reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.
Destaque-se, desde já, que ao optarmos por utilizar a expressão “pirâmide financeira” entre aspas, adotamos uma abordagem que visa a destacar a natureza genérica e controversa deste termo. Em que pese tal vagueza intrínseca ao termo ser incompatível com as regras de legalidade que regem o exercício da pretensão punitiva no direito penal, essa escolha estilística serve para enfatizar que a expressão “pirâmide financeira” pode englobar uma ampla variedade de esquemas fraudulentos e não se limita a uma definição técnica ou jurídica específica, a exemplo dos arts. 171 e 171-A do Código Penal, art. 2º, IX, da Lei n.º 1.521/1951 e art. 16 da Lei n.º 7.492/1986.
O presente artigo opinativo não tem a pretensão de analisar e de, tampouco, criticar a atividade legislativa, tal como foi feito profundamente pelo Professor Dr. Spencer Toth Sydow na 5ª edição do seu Curso de Direito Penal Informático – Partes Geral e Especial, Processo Penal Informático e Cibercriminologia[1]. Defende-se, contudo, na mesma linha da obra supracitada, que o operador do direito, que ainda comete erros elementares ao tratar sobre ativos digitais e tecnologia blockchain, seja capaz de distinguir empresas que trabalham legitimamente e que usam a liberalidade do mercado em busca de aferir lucro daquelas apoiadas em ardis claramente enganosos.
Nesse sentido:
“Não há dúvidas de que era preciso que surgisse um tipo penal específico e com pena mais gravosa para esquemas de pirâmide e movimentos fraudulentos de promessa de ganho fácil. Contudo, é preciso avaliar as posturas das empresas com o máximo de cuidado. A volatilidade do mercado de criptomoedas somado à previsibilidade de certas altas de preços (como por exemplo, o halving do Bitcoin) e a possibilidade de se automatizar compras e vendas legítimas de criptoativos usando movimentos de especulação são movimentos legítimos como o são movimentos de compra e venda de ações. Não se pode demonizar ações legítimas como a venda de produtos legais e autorizados, nem colocar na mesma condição de culpabilidade o criador do esquema fraudulento e as pessoas cooptadas que terminam por auxiliar o esquema com boa fé[2]”.
Evidencia-se que, na prática, a tipificação de “pirâmide financeira” pelas autoridades e por demais profissionais do direito ocorre de maneira quase aleatória e profundamente subjetiva. Tal abordagem é reiterada e amplamente disseminada pela mídia, por sites especializados e pelo público em geral, que tratam os investimentos em ativos digitais e criptomoedas de forma superficial, permeada por ambiguidades e por imprecisões técnicas. Trata-se de uma falta de rigor e discernimento que contribui não apenas para o cometimento de ilegalidades, mas também para a demonização indiscriminada de iniciativas legítimas, dificultando o desenvolvimento e a solidificação de um entendimento mais acurado e especializado sobre investimentos envolvendo ativos virtuais lato sensu.
Muitas vezes, a primeira coisa que vem à mente das pessoas quando ouvem falar de Bitcoin e outras criptomoedas é o estereótipo de que esses ativos digitais são ferramentas destinadas a criminosos para cumprirem seus desígnios de delinquência. Trata-se de uma percepção simplista, distorcida e equivocada que não condiz com o potencial positivo dessas tecnologias, que tem como objetivo a criação de um sistema de pagamentos e um meio de troca descentralizado, seguro, eficiente e que funcione independentemente de intermediários tradicionais. Inclusive, a Chainalysis, uma empresa norte-americana líder global em análise de blockchain e que fornece serviços e ferramentas para monitoramento e investigações que envolvem ativos digitais, esclareceu que em 2023, apenas 0,34% das transações on-chain (transações validadas e registradas permanentemente por meio do consenso da rede) de Bitcoin estavam associadas a atividades ilícitas[3].
Por esse motivo, Sydow diferencia operações legítimas e idôneas, como trading, alavancagens, operações automatizadas por APIs, negociações em OTCs, criação de carteiras mistas e outras estratégias, de empreitadas criminosas, como aquelas que prometem rendimentos descolados da realidade, operações fraudulentas que desviam recursos alheios, bots que desviam parte dos lucros, uso de exchanges não autorizadas pelo Banco Central Brasileiro, golpes de retorno de investimento em empresas de falsa mineração e lavagens de capitais, dentre outros, que “prejudicam a sociedade, os poupadores e a confiabilidade dos criptoativos”, bem como que “visam utilizar de modo deturpado a tecnologia que existe para gerar mais estabilidade à economia internacionalizada[4]”.
A falta de conhecimento sobre ativos digitais e a pobre educação financeira da população contribuem significativamente para a visão distorcida de que todas as iniciativas envolvendo criptoativos são “pirâmides financeiras”. Questões elementares, muitas vezes ignoradas antes da realização do investimento, como, por exemplo, volatilidade, privacidade, descentralização, bem como o devido entendimento da fase inicial de desenvolvimento regulatório do mercado, não devem ser interpretadas como indicativos de fraude, mas, sim, como importantes elementos de educação e conscientização do investidor, essenciais para o sucesso em qualquer tipo de empreitada financeira, seja ela tradicional ou mais arrojada.
Não se olvida o farto histórico de fraudes brasileiras que utilizaram ou fingiram utilizar criptomoedas para enganar pretensos investidores, alimentando essa percepção negativa que a sociedade, em geral, possui dos ativos digitais. Contudo, não se pode permitir que profissionais dedicados, que visam trazer soluções tecnológicas avançadas, ampliar o acesso aos serviços financeiros, e promover maior transparência, segurança e eficiência para diversos setores, sejam confundidos (e tratados) como criminosos.
[1] SYDOW, Spencer Toth. Curso de Direito Penal Informático – Partes Geral e Especial, Processo Penal Informático e Cibercriminologia. 5ª Edição – São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2024.
[2] SYDOW, Spencer Toth. Curso de Direito Penal Informático – Partes Geral e Especial, Processo Penal Informático e Cibercriminologia. 5ª Edição – São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2024. P. 576.
[3] Disponível em: https://go.chainalysis.com/crypto-crime-2024.html
[4] SYDOW, Spencer Toth. Curso de Direito Penal Informático – Partes Geral e Especial, Processo Penal Informático e Cibercriminologia. 5ª Edição – São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2024. P. 577