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O papel da Comissão de Valores Mobiliários no contexto das pirâmides financeiras

No ordenamento jurídico brasileiro, as pirâmides financeiras, notoriamente conhecidas por promover a obtenção de ganhos mediante especulações ou processos fraudulentos, são penalmente tipificados na redação do art. 2º, inciso IX, da Lei n.º 1.521/1951, que dispõe sobre crimes contra a economia popular:

 

Art. 2º. São crimes desta natureza:

(…)

IX – obter ou tentar obter ganhos ilícitos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas mediante especulações ou processos fraudulentos (‘bola de neve’, ‘cadeias’, ‘pichardismo’ e quaisquer outros equivalentes);”

 

A competência para processamento de julgamento desses crimes, por sua vez, é da Justiça Estadual, tal como dispõe o enunciado da Súmula n.º 498, do Supremo Tribunal Federal: “compete à Justiça dos Estados, em ambas as instâncias, o processo e o julgamento dos crimes contra a economia popular”. Na eventualidade do crime ter sido cometido em concurso com delitos previstos na Lei n.º 7.492/86, que define os crimes contra o sistema financeiro nacional, bem como na eventualidade de existência de lesão a interesses da União (STJ, CC 170.392[1] e HC 530.563/RS[2]), tem-se que a competência para processamento é julgado é da Justiça Federal, nos termos do inciso IV do art. 109 da Constituição Federal e do art. 26 da Lei n.º 7.492/1986.

 

Em contrapartida – e por motivos evidentes – a CVM não tem competência para atuar em processos que versem sobre ilícitos criminais e cíveis, exceto da qualidade de amicus curiae, na forma no disposto na redação do art. 31, da Lei n.º 6.385/1976[3], bem como para atuar em conjunto com o Ministério Público Federal em face da existência de Termo de Cooperação Técnica entre as entidades desde 08/05/2008[4]. Ainda assim, além da CVM possuir Acordo de Cooperação com a Senacon[5] (Secretaria Nacional do Consumidor) e ter proposto a Ação n.º 08/2022[6] da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA) em conjunto com a Polícia Federal, a CVM, tal como estabelecido pelo art. 9º, da Lei Complementar n.º 105/2001, frequentemente informa eventuais crimes que cheguem ao seu conhecimento ao órgão ministerial e à autoridade policial[7].

 

Em razão da limitação legal de sua competência, a atuação da CVM é restrita aos ilícitos administrativos, que geralmente são: (i) a realização de oferta pública de valores mobiliários sem o registro ou a dispensa de registro perante a CVM (infração ao art. 19, caput, e §5º, inciso I, da Lei n.º 6.385/1976 e ao art. 4º da Resolução CVM n.º 160/2022); (ii) operação fraudulenta (infração ao art. 2º, inciso III, da Resolução CVM n.º 62/2022); e (iii) exercício de atividade regulada sem a obtenção do registro exigido para a sua prática perante a CVM (como, por exemplo, no caso da atividade de administração de carteira de valores mobiliários, infração ao art. 2º da Resolução CVM n.º 21/2021).

 

Sem embargo disso, é perceptível que os pareceres técnicos e processos administrativos da Autarquia vem sendo constantemente utilizados para subsidiar a compreensão do Poder Judiciário, sobretudo no que concerne à aplicação do Teste de Howey, o que, por consequência lógica, pode caracterizar o cometimento dos delitos previstos na Lei n.º 6.385/1976 e da Lei n.º 7.492/1986.

 

O “Teste de Howey” guarda sua origem em um caso da Suprema Corte dos Estados Unidos julgado em 1946 (SEC v. W.J. Howey Co.), que posteriormente tornou-se um marco fundamental no direito dos valores mobiliários e na regulamentação do mercado de capitais não apenas dos Estados Unidos, mas também do Brasil e de outros países. Nesse sentido, o direito brasileiro incorporou o conceito de security do direito norte-americano e a CVM, em suas próprias palavras criou um “Howey Tropical”, abandonando “uma concepção fechada de valor mobiliário, para a adoção de uma concepção funcional-instrumental do que seria valor mobiliário, acabando por alargar sobremaneira sua definição, bem como a competência da CVM[8]“. Trata-se de um mecanismo tão caro para a CVM, que o entendimento da Autarquia é o de que “a caracterização de determinado produto como um contrato de investimento coletivo não depende de prévia manifestação da CVM, mas da sua subsunção aos requisitos do chamado Howey Test[9].”

 

Tendo em vista que a definição legal brasileira de contrato de investimento coletivo tem inspiração no direito norte-americano, aplica-se também a interpretação dessa jurisdição para enquadrar um ativo digital como um valor mobiliário. Nesse sentido, tem-se considerado as seguintes características para verificar se determinada operação com ativos digitais atrai a competência da CVM: (i) existência de investimento, ou seja, de um aporte em dinheiro ou bem suscetível de avaliação econômica; (ii) formalização mediante título ou contrato; (iii) caráter coletivo do investimento; (iv) expectativa de benefício econômico, seja por parceria, participação ou remuneração; (v) esforço do empreendedor ou de terceiro, de forma que o benefício econômico resulta da atuação de um terceiro que não seja o investidor; e (vi) oferta pública marcada pela captação de recursos em amplo sentido.

 

Em conclusão, embora a CVM não tenha competência legal para atuar diretamente em processos cíveis ou criminais, é notável e significativo observar que seus entendimentos estão sendo considerados pelo Poder Judiciário no contexto das pirâmides financeiras, sobretudo mediante a aplicação do Teste de Howey, que, por ser tão relevante e atual, foi expressamente citado e aplicado em casos de repercussão nacional que versam sobre empreitadas fraudulentas em investimento com ativos digitais, tal como a Ação Penal n.º 0802216-51.2023.4.05.8201/PB, que versa sobre o caso “Braiscompany” e na Ação Penal n.º 5012254-48.2022.4.04.7000/PR, que versa sobre o caso “Rentalcoins”. Trata-se de uma colaboração que evidencia a importância das análises da Autarquia, que contribuem para a proteção do mercado e dos investidores, fortalecendo o combate a práticas fraudulentas e assegurando maior justiça nas decisões judiciais.

 

[1]Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1952136&num_registro=202000101884&data=20200616&formato=PDF

[2] Disponível em:

https://www.stj.jus.br/websecstj/cgi/revista/REJ.cgi/ATC?seq=105444301&tipo=5&nreg=201902596988&SeqCgrmaSessao=&CodOrgaoJgdr=&dt=20200312&formato=PDF&salvar=false

[3] Art. 31 – Nos processos judiciários que tenham por objetivo matéria incluída na competência da Comissão de Valores Mobiliários, será esta sempre intimada para, querendo, oferecer parecer ou prestar esclarecimentos, no prazo de quinze dias a contar da intimação.

[4] Disponível em:

https://conteudo.cvm.gov.br/export/sites/cvm/convenios/anexos/Ministerio_-Publico_Federal.pdf

[5]https://www.gov.br/cvm/pt-br/assuntos/noticias/2021/cvm-e-senacon-assinam-acordo-de-cooperacao

[6]https://enccla.camara.leg.br/acoes/acoes-de-2022#:~:text=Ação%2008%2F2022%3A%20Propor%20medidas,financeiras%20e%20esquemas%20%22Ponzi“.&text=Colaboradores%3A%20AJUFE%2C%20ANPR%2C%20BCB,%2C%20PCRJ%2C%20PGFN%2C%20SF.

[7] “A CVM dispõe de diversos instrumentos legais para reprimir ilícitos praticados no âmbito do mercado de capitais, inclusive se envolverem ofertas irregulares de criptoativos que são valores mobiliários, tais como a emissão de Stop Orders e instauração de processos administrativos sancionadores. Ainda, nos casos que extrapolam sua competência, a Autarquia deve comunicar o Ministério Público Federal e Estadual e a Polícia Federal para a investigar as repercussões penais das condutas identificadas na esfera administrativa.” NASCIMENTO, João Pedro; DAMIANI, Maria Gabriela; e THIENGO, Pedro. “Os Primeiros Passos em Direção à Regulação dos Criptoativos no Mercado de Capitais.” In Direito Empresarial e suas Interfaces. Volume III. Homenagem a Fabio Ulhoa Coelho. São Paulo: Quartier Latin. 2022, pág. 595.

[8] PA CVM nº RJ2003/0499, j. em 28.08.2003, Dir. Rel. Luiz Antonio Sampaio Campos

[9] PAS CVM no 19957.006343/2017-63, j. em 07.05.2019, voto vencedor Dir. Gustavo Gonzalez

Nesse contexto, existem vários exemplos de stop orders exaradas pela Autarquia em face de empreitadas de investimentos fraudulentos, citando-se, por exemplo, as Deliberações CVM n.º 785/2017 (HashCoin Brasil), 821/2019 (Lex Tokens), 826/2019 (Atlas Quantum), 828/2019 (Trader Group), 830/2019 (Bitcurrency), 831/2019 (WeMake Capital), 837/2019 (Stratum) e 839/2019 (LTX Crypto).

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